sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

não vale a pena viver como um adulto

Hoje eu passei na praia. Andei a distância do apartamento do meu pai, onde eu estou hospedada agora pro final do ano, até o primeiro pedaço de água que eu encontrei onde eu podia me enfiar sem me cortar demais nas pedras.

Há não muito tempo atrás eu teria me enfiado pelas pedras mesmo. Indo com calma, mas animada, por cima das pontas, e provavelmente perdido um tampo do dedo ou qualquer coisa, mas nem notado porque a felicidade de estar fazendo algo meio perigoso era maior.

Semanas atrás eu tive um dia ruim e fui andar de patins, sozinha mesmo. Enfiei o joelho no chão tão feio que ficou uma rodela roxa por semanas. Eu ri. Doeu na hora mas tá tudo bem. Meu dia ficou melhor depois do tombo. Eu tenho idade pra cair, ralar, me estropiar. Depois dos 25 é só ladeira abaixo, hahaha — enfia essa merda no teu cu.

Eu devia ter ido pelas pedras. Mas eu tava com o celular.

No fone de ouvido eu ouvia uma playlist que eu tinha feito em 2021. Nessa época eu fazia esse mesmo caminho todo dia, e olhava o pessoal se divertindo na praia.

Umas das melhores memórias da minha vida é dessa época. Um grupo de garotos de uns 12 à 15 anos, pulando de um dos decks de saída dos barcos no mar, daí subindo a escada, e pulando de novo de tudo que é jeito. Uns tentavam dar mortal. Enfiavam a cara na água. Todo mundo ria. Era começo de tarde, e tava sol, mas não muito quente. A água brilhava. Eu filmei um segundinho deles brincando, eles viram e deram tchau.

Hoje eu cheguei na praia já era de noite, mas anda quente que nem o nono círculo do inferno, então tinha gente na praia ainda. Eu tirei os chinelinhos e fiquei andando pra lá e pra cá, chutando a água o mais alto que eu podia, no raso. Um grupo de crianças de uns 10 anos brincava um pouco mais pro fundo.

Daqui a pouco chega a mãe, com uma garrafa de cerveja na mão, berrando:

—Davi, sai daí agora! Não, Não, agora, não quero choro nem vela.

Daví abriu os braços, como quem perguntava, porra, sério memo?

Eu pensei, porra, dona, larga a breja, vai brincar com o Daví. A senhora tá precisando.

Mas eu tenho amor aos dentes. Não falei nada. A mãe não queria nem saber, de qualquer jeito. Voltou Daví, voltou todo mundo. Mas, mas sem drama, eles não perderam tempo algum. Voltaram pela areia correndo, já no meio do pega-pega.

Eu olhei pro oceano atlântico. O oceano atlântico. Ali na minha frente.

O celular no meu bolso, o casaco amarrado na cintura pra ser mais difícil pro ladrão só passar a mão.

Não quis nem saber. Me enfiei até onde dava, chutando a água pra cima. Teria entrado até o pescoço se eu fosse criança, ainda. Foda-se o iPhone. Porque uma criança de 10 anos tem iPhone, cacete? Ah calma. Eu tenho 28.

Porque uma criança de 28 tem um iPhone, cacete?

Voltando pra casa vi uma menina que não devia ter mais que a minha idade fumando na frente da farmácia do outro lado da rua. Enquanto eu esperava na faixa de pedestre ela deu um último trago no cigarro, passou a mão no rosto meio desolada, e entrou pela porta pra ir até o fundo, onde a gente pede remédio com receita. Na minha cabeça ela foi pedir remédios de enfisema pulmonar, mas é provavelmente porque recentemente uma das irmãs foi diagnosticada com isso aí. Igual minha avó, que morreu disso, inclusive. O médico disse pra ela "ou larga o cigarro ou morre em seis meses". Disseram exatamente a mesma coisa pra minha avó quando eu tinha uns três, quatro, anos. Na minha cabeça foi o mesmo médico. Tanto ela quanto minha avó pararam de fumar no dia seguinte. Minha avó viveu mais quinze anos. Brincava comigo no chão da sala, com brinquedos que eu guardava das vezes que eu ia no McDonald's, quando eu era bem criança. A gente gostava de ver fotos, também, e imaginar o que as pessoas tinham. Me ensinou umas brincadeiras antigas, quando eu era mais velha. Me ensinou o cordel do Pavão Misterioso. Ria de todas as minhas piadas.

Já perto de casa, vi um mercadinho, e ponderando se eu passava e comprava alguma coisa pra comer, um amigo meu mandou uma mensagem no celular pouco depois disso.

Rola colar no discord pra gente mandar aquele minecraft, bicho?

Okay. Pra isso que serve o celular.

 Tem macarrão em casa. E hoje eu descobri umas prioridade.

Claro, mano. Tava na praia, deixa só eu chegar em casa e tomar um banho que eu tô salgada kkkk

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

A caixa de gordura

Uma caixa de gordura é um tanque de concreto ou uma peça pré-fabricada em plástico onde a água da pia da cozinha é despejada antes de ser descartada na rede de esgoto. Dentro da caixa de gordura há uma determinada quantidade de água acumulada propositalmente.

Há alguns anos eu me mudei para o meu antigo apartamento, numa cidade a mais de 1.000 quilômetros de casa — bem longe, bem escondida. Antes de me mudar peguei o laudo da vistoria e vasculhei cada canto do apartamento para não ter nenhuma surpresa quando fosse entregá-lo à imobiliária.

Por serem mais leves do que a água as partículas de óleo e gordura que são despejadas na caixa de gordura junto com a água da pia da cozinha ficam boiando na superfície. Apenas a água "limpa" passa por um tubo na parte de baixo da caixa, evitando que a gordura provoque o entupimento da rede de esgoto.

Não houve um buraco de prego, uma janela, uma lâmpada, um espelho elétrico sequer que eu não tivesse conferido e batido com o laudo da vistoria antes de me mudar para o meu antigo apartamento. Qualquer coisa que eu tivesse que consertar ou trocar ao sair seria algo que eu mesmo tivesse quebrado ou gasto.

A gordura que se acumula na caixa de gordura forma placas sobre a superfície da água acumulada dentro da caixa de gordura. Não existe uma "rede de captação de gordura", a gordura não evapora e não dilui na água, ela fica boiando na superfície da caixa de gordura até ser limpa.

Quando eu estava me preparando para devolver meu antigo apartamento e voltar pra casa, peguei o laudo da vistoria e conferi tudo: todas as paredes, janelas, lâmpadas e espelhos elétricos estavam em ordem. Então, alguém me perguntou "você conferiu a caixa de gordura?".

Os dejetos e a gordura da água da louça lavada na pia depositadas na caixa de gordura ficam boiando na água acumulada e formam placas de gordura. Essa oleosidade vai ficando impregnada nas paredes da caixa de gordura e formando camadas de crostas que parecem um musgo oleoso e mal cheiroso.

Eu não sabia o que era uma caixa de gordura, então perguntei "o que é uma caixa de gordura?" e a pessoa me respondeu que era aquele ralo que ficava na área de serviço, na frente do tanque. Ela disse que pra conferir se a caixa de gordura estava limpa era só tirar o ralo. E eu perguntei "como assim, limpa?".

Em geral as caixas de gordura de casas e apartamentos modernos são de PVC e contam com um cesto para filtragem dos sólidos. Para limpá-las basta tirar a tampa da caixa de gordura, puxar o cesto e despejar seu conteúdo num saco de lixo comum. Depois é só reencaixar o cesto e tampar a caixa de gordura.

Não havia mais nenhum móvel no meu antigo apartamento, eu já tinha vendido todos. Dentro dele só havia uma manta dobrada, um travesseiro, uma bolsa cheia de roupas e eu. Abri o porta-malas onde todas as minhas coisas esperavam a viagem de volta, peguei uma chave de fenda, enfiei numa fenda da tampa e abri a caixa de gordura.

Em geral as caixas de gordura de casas e apartamentos modernos contam com um cesto para a filtragem dos sólidos. Basta tirar a tampa, puxar o cesto e despejar o conteúdo num saco de lixo comum. Mas a caixa de gordura do meu antigo apartamento ficava em um apartamento de um prédio antigo.

***

Às vezes o tempo em que vivi no meu antigo apartamento parece ter sido um sonho distante. Até eu me lembrar da caixa de gordura. Ela é muito real pra ter sido sonhada.

Embora não tenha sido uma experiência agradável, eu não me importei de ter que limpar a caixa de gordura do meu antigo apartamento. O ano que passei fora foi tão estranho que às vezes essa é a única lembrança que parece fazer algum sentido.

Às vezes eu acho até que a missão da minha vida, a prova que eu tinha que cumprir ao descer neste mundo, era limpar essa caixa de gordura, mesmo sem saber se fui eu quem a sujei tanto. Mas pra isso eu tinha que viver alguns meses num lugar a mais de 1.000 quilômetros de casa.

É como dizem: o maior tesouro do herói não é o elixir, é a jornada.

***

Eu acho que antes de mudar todo mundo deveria limpar sua caixa de gordura, mesmo sem ser culpado de ela estar suja. Mas pra isso a gente tem que encontrar a caixa.

E às vezes ela está num lugar distante.

Bem longe, bem escondida.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

alguns fragmentos

i.
Há muitos anos atrás eu lembro de fazer uma lista de coisas que fazia eu me sentir eu — e de um jeito bem profundo de eu, não só um "ah, eu gosto disso aqui". Tinha desde coisas muito bestas, tipo prender cabelo com um lápis, e ouvir jazz, até coisas maiores, que eu sei que estavam lá, mas não lembro quais eram. 

ii.
Ontem foi dia das mães, e eu vim pra baixada santista pra ver ela e o resto da família. Sempre tive uma relação de amor e ódio com a cidade em que eu nasci e cresci — pela maior parte da vida, já que eu nem sempre morei aqui —, e essa sensação as vezes é a mesma que eu tenho a respeito de coisas que eu nunca tive. E essa é também a mesma sensação de várias das coisas que tão nessa lista. Uma lista que tem o cheiro da maresia, que por muito tempo me fez até mal. Luzes de Natal daquelas que são lâmpada mesmo, coloridas. Neve. Duas coisas presentes em alguns dos momentos mais difíceis que eu já passei. Ambas na lista.

Assisti Seinfeld com a minha mãe. Rimos de verdade até das piadas meio sem graça.

iii.
Ouço o podcast da Julia Louis-Dreyfus, e esses dias finalmente ouvi o episódio em que a convidada é a Fran Lebowitz. Uma figura, e ajuda que tudo que eu ouvi desse podcast até agora me toca de uma forma que eu não sei explicar direito. Perguntas e respostas honestas — erros cometidos, arrependimentos. Sua memória favorita.

Julia abre o episódio falando da infância em Nova York, de comprar um brinquedo em uma loja que não existe mais. Da neve. Da cidade ao seu redor. Ela fala de ter mudado de lá muito, muito cedo, e se emociona falando sobre voltar.

iv.
Tenho um desses guias de viagem que é da série Para Leigos, sobre Nova York. Eu lembro do dia que eu comprei. Ganhei, na verdade.

Estávamos em São Paulo, eu, meus pais, uns amigos da família. Um deles me disse um dia que sempre quis visitar Nova York. Eu não lembro de saber muito sobre a cidade até aquele momento. Eu devia ter uns 12 anos, nem tinha muito como.

Alguma coisa clicou na minha cabeça, e eu fui atrás da sessão de livros de viagem. Se mal me lembro quando passamos no caixa eu pedi pro meu pai levar um livro; eu lembro bem dele dizer:

— Porque que você quer um livro sobre Nova York? Tá pensando em ir pra lá?

Eu dei de ombros. Não sabia responder, mas eu não queria ir embora sem o livro.

v.
Dei embora a maioria dos meus livros, quando mudei de vez da casa dos meus pais. 

Ainda tenho o Nova York Para Leigos. Acho que a maioria dos lugares que tão escritos lá nem existem mais.

vi.
To escrevendo esse texto sentada na sala de espera da minha psiquiatra. Não conhecia ela até recentemente, não pessoalmente. Só pela tela do Google Meet, ou das calls do WhatsApp. Vim de Uber, sem me importar com o trânsito na Av. Ana Costa. Quatro da tarde, nem era tão horário de pico assim.

Minha psiquiatra tem um jeito que me lembra uma personagem da Ilana Kaplan, uma psicóloga. Minha vida as vezes parece ficção mesmo. Quando acabar aqui eu vou pra casa do meu pai andando. São 40min de caminhada, mas eu vou pela praia, sem correria. Tomo um caldo de cana no caminho.

Eu fazia isso nos meus piores dias, em 2021. Terapia toda semana, e voltar andando pra casa dessa mesma rua. Tomar um caldo de cana. Eu queria sumir, naquela época. A caminhada e o caldo de cana estão na lista.

vii.
Nova York está na lista.

Não fui lá ainda. Mas tá lá.

domingo, 25 de dezembro de 2022

eu e meu antigo problema com cadernos

Eu tinha um problema com cadernos: tinha muitos.

Havia uma parte do meu guarda-roupa separada só pra guardar meus cadernos. Eu costumava usar um caderno para tratar de cada assunto: tinha o caderno dos rabiscos, o dos poemas, o das anotações; cadernos só pra escrever histórias, contos, ideias para filmes; cadernos para escrever os roteiros dos filmes que saiam do caderno das ideias. E tinha os cadernos de anotações: um pra anotações gerais, um para anotar sonhos e um caderno só pra passar as anotações a limpo.

Costumo andar sempre com um caderninho no bolso e anotar coisas que acho dignas de nota. Para não esquecer das coisas que anoto nos caderninhos comecei a passar o conteúdo deles a limpo num dos cadernos que guardava em meu guarda-roupa. Mas eu não os jogava fora. Então eu também tinha uma caixa cheia de caderninhos.

Eu e meu antigo problema com cadernos.

Acho que o maior problema era pensar que um dia eles poderiam ser a solução.

Em um dia ensolarado de verão eu resolvi o problema: peguei minhas caixas de cadernos, arranquei as folhas uma a uma e queimei tudo. Todos aqueles sentimentos reprimidos, todas aquelas interpretações antigas de mundo, todas aquelas ideias que apodreceram antes de madurar, a fumaça subia e transmutava tudo numa espécie de ritual de purificação.

Tudo, menos algumas coisas que eu fiz questão de anotar num caderno novo antes de queimar os antigos. Agora tenho só um caderno onde guardo tudo que acho digno de nota: sonhos, fotos, notícias, coisas intrigantes, diálogos marcantes, coisas diferentes, anotações de direção, relatórios de filmagem, ideias que jamais serão filmadas...

Eu ia queimá-lo também, mas vai que um dia ele seja a solução.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Carta à Leon

Querido Leon,

Como vai aí no bem-bom, palhaço? Vendo tudo de longe? Que vidão.

Apesar de que não né. Não tecnicamente, ao menos.

Eu tava pensando em quando eu era criança e lembrei de alguns momentos no apartamento de Santos. Aquele primeiro, que a mãe me olhava da janela e me via brincando na escola. Eu era meio brigona, quando era criança. E ao mesmo tempo eu sempre fui meio sensível. Acho que até demais.

Uma coisa puxa outra agora. Quando tudo te atinge, tudo dói, você arranja um jeito ou outro de fazer não doer. Seja um senso de humor bizarro, uma frieza, uma esquisitice... uma mania de quebrar régua na cabeça dos meninos quando eles zoam você.

Eu era um potinho de sensibilidade, mas você teria sido tão mais que eu. E não ia ter problema porque você ia poder ser.

Eu teria sido uma ótima irmã mais velha — eu seria mais velha. Eu ia te odiar um pouco, porque é o normal. Você ia ter mais talento que eu pra tudo que a gente fizesse, provavelmente. Talvez a mãe gostasse mais de você, até. Provavelmente. Sabe como ela é.

Acho que você teria sido mais sensível que eu. E nunca, por tudo nessa vida, eu ia te deixar ficar assim que nem eu. Eu teria esfarrapado qualquer um que chegasse perto de ti. E feito tua vida um inferno eu mesma depois, ou sei lá.

Você nunca ia ver uma briga, se fosse por mim. Nunca ia ter que fingir que não sabia o que tava rolando. Não ia ter que ficar criando a mãe; nunca ia ter que ver ela triste. Cê ia estudar e jogar video game com o pai e dar risada de alguma coisa idiota com o Gabriel e o Rafael.
A gente ia comer churrasco no sítio e brincar no campinho e você ia chorar quando os peixinhos que o cara esquisito que morava do lado dava pra gente morressem. Você ia ficar irritado porque eu ia ter que ir com você pra comprar bala na vila.
A gente ia ter os mesmos interesses bizarros de quem foi criado por quem foi. A gente ia falar inglês quando não queria que os outros entendessem. Cê ia ser um aluno melhor que eu e estudar sei lá. Direito. Medicina. Engenharia. Uma dessas coisas que já tem demais, mas que deixam a família impressionada. E ia ser porque você quer mesmo, porque o pai e a mãe não dão uma foda, e eu não ia deixar você fazer alguma coisa só porque alguém acha que deve.

Aposto que cê ia tocar algum instrumento. Guitarra. Ou... No meu sonho você toca piano e a gente toca junto. Mas não sei se a gente seria próximo.

Quem eu tô enganando. Claro que sim. Claro que sim.

Eu conheci as filhas da namorada (esposa?) nova do pai, e elas parecem muito legais. Bem próximas. Dizem que brigaram muito na infância, mas dá pra ver que... Foda-se né.

Vai além de se ajudar. Vai além de companhia.

Acho que não tem nada que pareça com isso. Que seja meio equivalente. Nada que crie um laço assim. Eu tirei umas fotos das três juntas, elas se vendo pela primeira vez em acho que três anos. 

Não. Não tem nada assim. Não tem nada que vá substituir esse fio que devia ter entre eu e você. Eu vejo ele as vezes. Amarrado no meu pulso, um dos fins, e o outro sumindo pro nada. 

Nos meus momentos de maior estresse, daqueles em que parece que alguém abriu minha alma no meio e que tudo é meio... sei lá, demais. Nesses momentos eu tenho saudades de ti — não, não só saudades. Eu sinto a falta. Todas as quinas, contornos — eu conheço o perímetro dessa falta tão bem que eu acho que eu podia desenhar. Esculpir. Tem forma, volume.

Eu queria poder puxar o fio e achar você do outro lado, mas não dá. E quando eu tento eu lembro que não dá, e daí eu não puxo porque quando mais eu tento pior é sabe que eu tô sozinha.

Daquela vez que eu disse "é que não é você que tá aqui né," você disse:

"Eu sempre tô." 

E eu até acredito que sim. As vezes é o que deixa meu dia menos escroto, na real.

Mas eu queria ter certeza. Eu queria poder sentir uma resistência qualquer do outro lado da linha. Alguma segurança de que no outro fim tem você.

Enfim.

Espero que eu não esteja zoando tanto as coisas. Espero que cê não esteja pensando "puta merda eu devia ter ido. Essa maluca só faz merda".

Eu tô fazendo meu melhor. E rezando pra que seja o suficiente.

Dá um oi pra vó e pro vô por mim. Pra vózinha também. E pra mais todo mundo que eu não tô lembrando agora.


Tua irmã,

Ariel.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

δημοκρατία

Meu pai era operador de empilhadeira. Minha mãe era empregada doméstica.

Uma vez, quando eu era criança, ao ouvir meu pai falar que teria de fazer hora extra naquele dia, perguntei o por  quê. Ele disse que seu chefe, o encarregado da seção, tinha pedido.

Eu disse que gostaria que ele fosse chefe, aí não precisaria obedecer ninguém e nem fazer hora extra e poderia descansar e ficar com a gente mais tempo. E meus pais disseram: "Todo mundo tem um chefe".

Perguntei quem era o chefe do encarregado, meu pai disse que era o engenheiro. Perguntei quem era o chefe do engenheiro, meu pai disse que era o gerente. Perguntei quem era o chefe do gerente, meu pai disse que era o diretor. Perguntei quem era o chefe do diretor, meu pai disse que eram os donos da empresa.

Quando perguntei se os donos da empresa tinham um chefe, minha mãe disse que era o prefeito. Quando perguntei quem era o chefe do prefeito, minha mãe disse que era o governador. Quando perguntei quem era o chefe do governador, minha mãe disse que era o presidente.

Nesse ponto achei que havia chegado ao topo. Afinal, quem poderia ser o chefe do presidente?

Ao apresentar meu argumento, meus pais disseram que o chefe do presidente somos nós, o Povo, porque somos nós que escolhemos o presidente, e que mesmo o presidente tem que seguir o que manda a Lei, ou um juiz, em nome do povo, pode mandar prendê-lo.

Meu pai era operador de empilhadeira. Minha mãe era empregada doméstica.

Eles nunca foram à faculdade, nunca estudaram a Constituição, nunca pisaram numa Câmara Municipal que fosse...

Mas sem saber, eles sabiam o que é Democracia.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

uma cena #2: overture em tangerina


Lembrei da minha bisavô esses dias. Uma senhora com quem eu convivi bem pouco, mas que durante esse tempo fez eu me sentir em casa nesse planeta. Umas das poucas que conseguiu esse feito.